O riso e a democracia

Contexto: O tema “limites do humor” sempre me interessou. Ao ler ou ver documentários sobre o assunto, percebi que a maioria deste debate aparece sob o contexto dos comediantes e humoristas, com um ou outro depoimento de cartunistas. A proposta desse artigo surgiu no curso de Direito como proposta de tema de TCC. A ideia era pesquisar decisões judiciais que envolvessem processos contra cartunistas. Infelizmente tive que trancar a matrícula e por esse motivo este texto não passou por uma revisão ou avaliação de professores da área. Mas para não deixar a pesquisa empoeirando dentro de um HD, segue parte da pesquisa que um dia pretendo dar continuidade.

O RISO E A DEMOCRAIA
Os limites constitucionais do humor gráfico
Richardson Santos de Freitas

LIBERDADE DE EXPRESSÃO

A liberdade de expressão é um direito fundamental positivado em diversas convenções internacionais de direitos humanos, tratados e constituições.

Segundo Rigamonte (2018, p. 22), “a liberdade de expressão em sentido estrito é o direito que as pessoas têm de livre se expressar, isto é, de fazer difundir, por qualquer meio, ideias e opiniões de qualquer natureza (artística, literária, científica etc.)”. O autor demonstra que há também o conceito de liberdade de informação, que é o direito de conhecer os fatos e ficar a par das notícias e dos dados de interesse da comunidade. A diferença é que enquanto a liberdade de informação trabalha com a divulgação de fatos baseado na exigência da prova da verdade; a liberdade de expressão está baseada no livre pensamento expresso por um meio qualquer, centrada na opinião pessoal, e não está condicionada à verdade. 

A liberdade de expressão faz parte da construção da dignidade da pessoa humana, integrante de sua personalidade humana, e segundo Ronald Dworkin (apud RODRIGUES JUNIOR, 2009), não sendo preciso cumprir finalidade específica alguma, assumindo as dimensões que podem ser tanto individuais, quanto sociais.

A liberdade de imprensa, destinada à comunicação de massa, nasce como uma forma de exteriorizar a liberdade de expressão stricto sensu e a liberdade de informação, que é a garantida aos meios de comunicação em geral. Através de seus veículos de comunicação, de grande alcance, propaga notícias e artigos de opinião usando o conceito da liberdade de expressão em sentido mais amplo.

Para uma sociedade democrática, a pluralidade de ideias e visões diferentes do mundo é fundamental para o crescimento de uma sociedade em constante evolução. Não existindo uma verdade absoluta, os argumentos e discussões são vitais para a livre circulação de ideias e ideologias, sustentando o direito de informar, de se informar e de ser informado.

LA CARICATURE – A CRÍTICA DA BURGUESIA

Com o enfraquecimento político da nobreza e do clero, onde o modelo de Monarquia estava em transição para o Estado Liberal, a burguesia europeia passou produzir panfletos trazendo artigos opinativos contendo suas insatisfações com os governos. Além dos textos, foram incorporados os desenhos satíricos. Como boa parte da população ainda era analfabeta, os desenhos humorísticos ganharam popularidade. Em 1830, surgiu na França o semanário La Caricature, editado por Charles Philipon e redigido por Balzac. Com colaborações de vários artistas, seu principal alvo era o reinado francês.

Por causa da caricatura Gargantua que critica o Rei Luís Filipe I, feita por Honoré Daumier em 1931 , o artista e o editor da revista La Caricature sofreram censura e foram levados para a Corte. Julgados no ano seguinte, a arte foi considerada obscena, rude e vulgar. Os réus foram condenados a pagar uma multa e cumpriram pena de 6 meses de prisão. Após a libertação, a La Caricature deixou de circular.

A TENDÊNCIA DO HUMOR GRÁFICO CHEGA AO BRASIL

Nos 300 anos iniciais do período colonial brasileiro era proibida a impressão de textos, livros ou qualquer tipo de publicação no país. O panorama só muda com a transferência da Corte Portuguesa para o Brasil, em 1808. Somente em 1824, com a Constituição imposta a Dom João VI, o monopólio estatal foi quebrado. Mesmo assim, não foi considerado um negócio lucrativo devido ao alto índice de analfabetismo dos brasileiros.

Segundo Sanchotene (2011, p. 21), o primeiro exemplo de desenho em forma humorística do Brasil foi publicado em 1831 no O Corcudão, do estado de Pernambuco. Corcunda era o apelido dado aos membros do Partido Restaurador, que buscava devolver o reinado à D. Pedro I. 

Porém, a primeira charge feita no Brasil só foi impressa em 1837 e é de autoria de Manoel de Araújo Porto-Alegre. Com o título A Campainha e o Cujo, publicada no Jornal do Commercio, tinha como tema uma crítica contra o jornalista sendo cooptados pelo governo para trabalhar no Correio Oficial do Rio de Janeiro. .

A Campainha e o Cujo, de Manoel de Araújo Porto Alegre – 1837

ANGELO AGOSTINI – O PRIMEIRO PROCESSO CONTRA A IMPRENSA BRASILEIRA

Angelo Agostini nasceu no dia 8 de abril de 1843, na cidade de Vercelli – Piemonte, na Itália. Passou a infância em Paris onde estudou na Escola de Belas Artes. Aos 16 anos migra-se para o Brasil com sua mãe. 

Inicia sua carreira artística em 1865 desenhando para a revista O Diabo Coxo de São Paulo. Na revista publica suas primeiras histórias ilustradas (sem sequências, nem personagem fixo) e charges. Angelo era conhecido por suas opiniões fortes e críticas à sociedade, sobretudo contra os políticos e a Igreja. Em uma época imperialista e escravocrata, defendeu os ideais abolicionistas e republicanos. Suas caricaturas ganharam fama por serem ofensivas, o que lhe rendeu vários inimigos. Ele enfrentou várias pressões. 

Trabalhando para o jornal O Cabrião, na edição de número 6 de 4 de novembro de 1866, Agostini publica a charge intitulada Cemitério da Consolação no dia de finados. O desenho provocou o primeiro processo contra a imprensa brasileira. O senhor Cândido Justiniano Silva, indignado com a charge, apresentou ao delegado de polícia da época a queixa contra os responsáveis pelo jornal pelo crime de ofensa à moral pública usando papéis impressos. A denúncia era que o desenho infringia o artigo 279 do Código Criminal do Brasil Império, capítulo VII, que tratava do uso indevido da imprensa. Segundo Cândido, “os mortos e enterrados no cemitério público da Consolação haviam sido ridicularizados.” 

Após o julgamento, a sentença foi favorável ao réu:

“A opinião do promotor, nesse sentido, deixa claro que, embora considerada um gracejo de mau gosto, aquela caricatura não representa prejuízo à moralidade pública, sendo, ao contrário, um benefício no sentido de corrigir os costumes. O delegado vai mais longe, informando que alguns elementos utilizados não são apropriados à linguagem poética e artística que deveria conter a caricatura, mas que a acusação não procede por não haver nela quaisquer excessos.” (2008, Souza, p. 224).

“A opinião do promotor, nesse sentido, deixa claro que, embora considerada um gracejo de mau gosto, aquela caricatura não representa prejuízo à moralidade pública.”


ESTUDO DE CASO – 01

EXPOSIÇÃO RIR É RISCO

Em 2019, um processo contra charges ganhou os noticiários nacionais. A exposição Rir é Risco era uma mostra de charges realizada pelo Coletivo Grafar – Grafias Associados do Rio Grande do Sul. Essa exposição foi montada no espaço interno da Câmara Municipal do Rio Grande do Sul (CMPA), devidamente selecionada pelos trâmites legais de cessão de espaço. As obras ficariam expostas no período de 2 a 13 de setembro de 2019.

Inaugurada no final da tarde do dia 2 de setembro, o conteúdo das charges teve repercussão por conta das críticas ao Presidente da República, Jair Bolsonaro. A Presidente da Câmara Municipal, Vereadora Mônica Leal e da mesa diretora da CMPA, ordenaram, no dia 4, o cancelamento imediato da exposição e o recolhimento das obras.

Alegando censura, diversos cartunistas, a Associação Mães e Pais pela Democracia e Associação Juristas pela Democracia (AJURD), impetraram um mandado de segurança. O processo 9065657-04.219.8.21.0001 foi distribuído na 3ª Vara da Fazenda Pública do Foro Central de Porto Alegre. O juiz Cristiano Vilhalba Flores deferiu a liminar no dia 12 de novembro determinando a liberação imediata, recolocação no mesmo espaço do qual foram retiradas e exposição pelo prazo de 12 dias originalmente solicitados.

Em sua decisão, o juiz argumentou:

“A liberdade de expressão é garantia que decorre da dignidade da pessoa humana, conquistada dos direitos civis já preconizada na Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, quando em seu art. XIX estabeleceu que todo ser humano tem direito à liberdade de opinião e expressão; este direito inclui a liberdade de, sem interferência, ter opiniões e de procurar receber e transmitir informações e ideias por quaisquer meios e independentemente de fronteiras. Garantia esta que é repetida no Art. 13 da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica), da qual o Brasil é signatário desde o ano de 1992.” 

A sentença cita dois princípios: o da incensurabilidade e do pluralismo. A incensurabilidade busca a incolumidade (ação desprovida de lesão corporal ou moral) da comunicação humana contra proibições desprovidas de razoabilidade ou, até mesmo, arbitrárias. O pluralismo assegura o debate de ideias, concepções e ideologias distintas existentes em uma sociedade democrática de direito. 

A decisão continua argumentando que as charges têm como essência suas questões políticas ou ideológicas, e sua interpretação sempre será feita de forma parcial, ou seja subjetiva. Jamais podem ser reguladas por um padrão legal ou ético. Evidentemente, excessos podem ser reparados por meio dos mecanismos de reparação posto à disposição de quem tem violado direito seu. Porém, a liberdade de expressão deve ganhar ainda mais elasticidade quando manifestada em relação a figuras públicas, pela própria natureza dos cargos que ocupam, expostos a constantes juízos de valor pela opinião pública.

A CMPA não recorreu. As obras foram recolocadas e expostas até o fim do novo prazo estipulado pelo juiz.


ESTUDO DE CASO – 02

SE NÃO SE IMPORTOU COM FOTO, NÃO HÁ DE RECLAMAR SOBRE CHARGE

A Desembargadora Cristina Tereza Gaulia, da 41ª Vara Cível do Estado de Rio de Janeiro, resolveu negar provimento ao recurso da Apelação Cível nº 0171549-17.2016.8.19.0001 de Jair Bolsonaro, tendo como apelado a Editora O Dia Ltda. A alegação é sobre a existência de violação de imagem e da honra em decorrência de uma charge de autoria de Aroeira publicada no jornal, na época que o apelante ainda era Deputado Federal. A alegação é que a charge associava a sua imagem de homem público à ideologia do nazismo.

O caso foi analisado sobre o confronto entre os direitos constitucionais fundamentais ligados à honra e a liberdade de expressão:

“Art. 5º – (…)
IV – é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato;
(…)
IX – é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença;
X – são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano materialou moral decorrente de sua violação;
XIV – é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional;
(…)
Art. 220 – A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição.
§1º – Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado o disposto no art. 5º, IV, V, X, XIII e XIV.
§2º – É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística.”

A desembargadora utiliza, neste caso, a doutrina de Mártires Coelho:

“(…) num eventual confronto de princípios incidentes sobre uma situação concreta, a solução não haverá de ser aquela que acode aos casos de conflito entre regras. No conflito entre princípios, deve-se buscar a conciliação entre eles, uma aplicação de cada qual em extensões variadas, segundo a respectiva relevância no caso concreto, sem que se tenha um dos princípios como excluído do ordenamento jurídico por irremediável contradição com o outro. (…) O juízo de ponderação a ser exercido liga-se ao princípio da proporcionalidade, que exige que o sacrifício de um direito seja útil para a solução do problema, que não haja outro meio menos danoso para atingir o resultado desejado e que seja proporcional em sentido estrito, isto é, que o ônus imposto aos sacrificado não sobreleve o benefício que se pretende obter com a solução. Devem-se comprimir no menor grau possível os direitos em causa, preservando-se a sua essência, o seu núcleo essencial (modos primários típicos de exercício do direito). Põe-se em ação o princípio da concordância prática, que se liga ao postulado da unidade da Constituição, incompatível com situações de colisão irredutível de dois direitos por ela consagrados.” 

Neste confronto de direitos fundamentais, foi considerado que a intenção da charge aproximou-se mais da crítica humorística (animus jocandí) do que o objetivo de atingir a reputação e a honra do político (animus difamandi).

As pessoas, ao exerceram cargos públicos, passam a condição de serem monitorados e terem suas condutas avaliadas através de manifestações, seja positivas ou negativas.

Pesou na sentença o fato de que defesa dos réus anexou ao processo uma foto que motivou a produção da charge. Na foto, Jair Bolsonaro aparece ao lado de um homem fantasiado de Hitler “e não há notícias de que tenha apresentado qualquer irresignação, seja pela via extrajudicial, seja pela judicial, no sentido de impedir sua veiculação por qualquer motivo” (trecho da sentença).


ESTUDO DE CASO – 03

NÃO HÁ SOCIEDADES LIVRES SEM LIBERDADE DE EXPRESSÃO

A Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televião (Abert) impetrou com Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 4.451) no Supremo Tribunal Federal, onde questionou a inconstitucionalidade do art. 45, incisos II e III, da Lei 9.504/1997, Lei das Eleições. O argumento era que estes dois incisos feriam a liberdade de expressão e pluralismo de ideias, criando um grave  efeito silenciador sobre as emissoras ao proibir a divulgação de temas políticos polêmicos. Estas normas inviabilizariam a veiculação de sátiras, charges e programas humorísticos envolvendo questões ou personagens políticos durante o período eleitoral.

“Art. 45 A partir de 1º de junho do ano da eleição, é vedado às emissoras de rádio e televisão, em sua programação normal e em seu noticiário; […] II – usar trucagem, montagem ou outro recurso de áudio ou vídeo que, de qualquer forma, degradem ou ridicularizem candidato, partido ou coligação, ou produzir ou veicular programa com esse efeito; III – veicular propaganda política ou difundir opinião favorável ou contrária a candidato, partido, coligação, a seus órgãos ou representantes.”

O Tribunal, por unanimidade e nos termos do voto do Relator, julgou procedente o pedido da ADI 4.451 – STF em certidão em trânsito em julgado publicado no dia 15 de março de 2019 e publicada no DOU em 20 de março de 2019. Por arrastamento, a inconstitucionalidade também foi confirmada para o § 4º e do § 5º do mesmo artigo.

“ § 4o  Entende-se por trucagem todo e qualquer efeito realizado em áudio ou vídeo que degradar ou ridicularizar candidato, partido político ou coligação, ou que desvirtuar a realidade e beneficiar ou prejudicar qualquer candidato, partido político ou coligação. ; § 5o  Entende-se por montagem toda e qualquer junção de registros de áudio ou vídeo que degradar ou ridicularizar candidato, partido político ou coligação, ou que desvirtuar a realidade e beneficiar ou prejudicar qualquer candidato, partido político ou coligação.”

O Relator, Ministro Alexandre de Moraes, em seu voto afirmou que “não cabe ao Estado, por qualquer dos seus órgãos, definir previamente o que pode ou não pode ser dito por indivíduos ou jornalistas.” É assegurado o exercício pleno do direito de expender críticas a qualquer pessoa, ainda que em tom áspero, sarcástico,irônico ou irreverente. 

O voto do Ministro Celso de Mello, que acompanhou o relator, trouxe em sua argumentação que: 

“Não há pessoas nem sociedades livres sem liberdade de expressão, comunicação, de informação e de criação artística, mostrando-se inaceitável qualquer deliberação estatal, cuja execução importe em controle do pensamento crítico, com o consequente comprometimento da ordem democrática.”

No processo de comunicação social e no plano da semiótica da cultura, o riso e o humor assumem posição de inquestionável relevo e importância na história do pensamento e no curso do desenvolvimento das instituições.

O riso, por isso mesmo, deve ser levado a sério, pois constitui, entre as várias funções que desempenha, o papel de poderoso instrumento de reação popular e de resistência social a práticas que caracterizam ensaios de dominação governamental, de opressão do poder político, de abuso de direito ou de desrespeito aos direitos dos cidadãos.

Segundo fala do Desembargador José Renato Nalini, TJSP, citado na argumentação da ADI: 

“Os Romanos, em sua sabedoria, consagraram o brocardo: o riso castiga os costumes. O que significa isso? O humor é uma forma irônica de ridicularizar as condutas condenáveis. A impotência de muitas pessoas para corrigir as anomalias comportamentais da classe política se traduz em piadas. Se não se pode fazer outra coisa, pelo menos zombe daqueles que se embaraçam na vida pública e não sabem distinguir o que é do povo e o que é interesse próprio.”

O riso e o humor, por isso mesmo, são transformadores, são renovadores, são saudavelmente subversivos, são esclarecedores, são reveladores. É por isso que são temidos pelos detentores do poder ou por aqueles que buscam ascender, por meios desonestos, na hierarquia governamental.

O humor e o riso constituem armas preciosas, instrumentos poderosos de insurgência contra os excessos do poder, contra os desmandos dos governantes, contra os abusos da burocracia estatal, contra o menosprezo das liberdades, contra o predomínio da mentira, contra o domínio da fraude.

O direito de criticar, de opinar e de dissentir, qualquer que seja o mérito de sua veiculação, representa irradiação das liberdades do pensamento, de extração eminentemente constitucional.

O direito à liberdade de expressão, garantido constitucionalmente, não tem aplicação plena e irrestrita, havendo limites relativos à proteção da honra e da imagem, direitos estes também protegidos pela Constituição da República, não podendo os réus extrapolar a medida necessária a atender o seu fim social.

Porém Mello alerta que o direito à liberdade de expressão não tem aplicação plena e irrestrita. Há limites relativos à proteção da honra e da imagem, não podendo os réus extrapolar a medida necessária a atender o seu fim social:

“1. Embora a proteção da atividade informativa extraída diretamente da Constituição garanta a liberdade de “expressão, da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença” (art. 5º, inciso IX), também se encontra constitucionalmente protegida a inviolabilidade da “intimidade, vida privada, honra e imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação” (art. 5º, inciso X).

2. Nesse passo, apesar do direito à informação e à liberdade de expressão serem resguardados constitucionalmente – mormente em épocas eleitorais, em que as críticas e os debates relativos a programas políticos e problemas sociais são de suma importância, até para a formação da convicção do eleitorado -, tais direitos não são absolutos. Ao contrário, encontram rédeas necessárias para a consolidação do Estado Democrático de Direito: trata-se dos direitos à honra e à imagem, ambos condensados na máxima constitucional da dignidade da pessoa humana.

3. O direito à informação não elimina as garantias individuais, porém encontra nelas os seus limites, devendo atentar ao dever de veracidade. Tal dever, ao qual estão vinculados os órgãos de imprensa não deve consubstanciar-se dogma absoluto, ou condição peremptoriamente necessária à liberdade de imprensa, mas um compromisso ético com a informação verossímil, o que pode, eventualmente, abarcar informações não totalmente precisas. Não se exigindo, contudo, prova inequívoca da má-fé da publicação.” (REsp 1331098/GO, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 05/09/2013, DJe 24/10/2013)


ESTUDO DE CASO – 04

Crime continuado, charge de Aroeira

Jair Bolsonaro voltou a processar Aroeira por associar sua imagem ao nazismo.

O presidente Jair Bolsonaro fez uma live em seu canal oficial em que incentivava pessoas a invadir hospitais para filmar leitos reservados a tratamento de pessoas com Covid-19.

“Seria bom você fazer na ponta da linha. Tem hospital de campanha perto de você, hospital público, arranja uma maneira de entrar e filmar. Muita gente está fazendo isso e mais gente tem que fazer para mostrar se os leitos estão ocupados ou não, se os gastos são compatíveis ou não. Isso nos ajuda”. Transcriação da fala de Jair Bolsonaro

Após a live, houve ocorrências de tentativas de invasão em hospitais e uma investigação sobre esses casos foi solicitada pela Procuradoria Geral da República.

Sobre este fato, o cartunista Aroeira publicou uma charge no site Brasil 247 em que Bolsonaro pintava a cruz vermelha, símbolo da saúde e dos hospitais, a transformando em uma suástica nazista. Mais tarde o jornalista Ricardo Noblat, da revista Veja, republicou o desenho em seu twitter.

No dia 15/06, o Ministro da Justiça e Segurança Pública do Brasil, André Mendonça, solicitou abertura de inquérito contra o cartunista e o jornalista com base na lei dos crimes contra a segurança nacional, a ordem política e social. Cita o artigo 26.

LEI Nº 7.170, DE 14 DE  DEZEMBRO DE 1983.
Art. 26 – Caluniar ou difamar o Presidente da República, o do Senado Federal, o da Câmara dos Deputados ou o do Supremo Tribunal Federal, imputando-lhes fato definido como crime ou fato ofensivo à reputação.
Pena: reclusão, de 1 a 4 anos.
Parágrafo único – Na mesma pena incorre quem, conhecendo o caráter ilícito da imputação, a propala ou divulga.

A Associação Brasileira de Imprensa (ABI) emitiu nota em defesa do Aroeira e Noblat.

“A aversão à crítica é própria das ditaduras e dos candidatos a ditador.
No entanto, as ameaças não calarão os defensores da liberdade de imprensa e da democracia.”
Trecho da nota da ABI

O site Jota consultou juristas sobre o processo. O professor de Direito Civil da UERJ, Anderson Schreiber, afirmou que charges são uma forma de exercício do direito de sátira e instrumento de crítica política indispensável às sociedades democráticas. Diz ainda:

“Charges, como caricaturas, envolvem sempre algum grau de exagero, de amplificação, de hipérbole para destacar algum aspecto ou característica daquele que é retratado.”

No dia 26/05/2021, a juíza Pollyanna Kelly Maciel da Justiça Federal da 1ª Região, em Inquérito Policial número 1040241-18.2020.4.01.3400, proferiu sentença de arquivamento do processo por atipicidade das condutas. O fundamento era de que não é possível extrair-se da charge a prática do crime tipificado no art. 26 da Lei de Segurança Nacional.

A defesa de Aroeira alegou que :

” QUE a charge não diz respeito a pessoas e sim a intenção de fazer crítica ao posicionamento ou ao exercício de poder; QUE perguntado se a charge teve por escopo vincular a imagem do Presidente da República ao nazismo respondeu que não; QUE a intenção foi apenas associar a chamada da população para invadir hospitais, que aos olhos do declarante é uma demonstração de certo autoritarismo e de fuga das leis, uma vez que não cabe à população tomar esse tipo
de atitude, numa situação de risco claro e evidente à saúde; QUE o declarante deixa claro que as suas charges são impessoais e dizem respeito ao cargo e ao exercício do poder; QUE a chamada feita para invasão dos hospitais, sem qualquer respaldo na legislação, na visão do declarante se aproxima de medidas adotadas por regimes totalitários;”

A juíza conclui que a não há indícios que a conduta provoque lesão real ou potencial à integridade territorial e à soberania nacional, nem são condutas idôneas para atingir a figura do Chefe da Nação, de modo a atingir a segurança e integridade do Estado brasileiro.

Assim como na sentença de Angelo Agostini, a juíza finaliza opinando sobre a estética da charge usando o conceito de “banalização do mal” criada pela filósofo judia Hannah Arendt:

“As investigadas condutas, como assinalei, não são criminosas, mas revelam lamentável mau gosto e são moralmente repulsivas.”


ESTUDO DE CASO – 05

O fato que motivou a charge refere-se a morte da mãe do empresário, Regina Hang, que foi internada com covid-19 e tratada com o “kit covid”, método ineficaz mas defendido por Luciano Hang. No prontuário, a causa da morte foi alterada para pneumonia bacteriana, mudança confirmada pela advogada do Hospital Prevent Senior. O episódio ganhou mais repercussão quando foi exposto na CPI da Covid, no Congresso.

Fernando Antônio Rosário Paula da Motta (Nando Motta) então criou a charge, onde vários personagens do cinema de terror se espantavam com o horror do ato de Hang e o chamando de mostro.

Em novembro de 2021, o empresário Luciano Hang abriu processo contra o cartunista . Tramitando no Juízo da Vara Cível da Comarca de Brusque, o Processo nº 5015168-46.2021.8.24.0011 está sob a responsabilidade do juiz Gilberto Gomes de Oliveira Júnior. O valor da causa é de 50 mil reais. (Fonte: https://eprocwebcon.tjsc.jus.br/)

Ainda está em fase inicial , onde uma audiência de conciliação foi marcada.

Registrado aqui para acompanhar os argumentos e evolução do processo.

CONCLUSÃO

A liberdade de expressão é um direito positivado nos tratados internacionais dos quais o país faz parte e pela Constituição Federal, segundo os inciso do Artigo 5º sobre os Direitos e Garantias Fundamentais:  

IV – é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato;

IX – é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença.

Porém esses direitos não são absolutos e não estão acima dos outros direitos e deveres individuais e coletivos previstos no Art. 5º. Caso um cartunista exponha o seu retratado ao desprezo público, a vítima poderá reivindicar reparações de seus eventuais danos morais através da Justiça:

V – é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem;

X – são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;

O humor tem um papel social importante na luta contra os abusos e irregularidades do poder político, através de sua característica subversiva de contestação e irreverência por meio do riso ou da ironia.

Conclui-se que a liberdade de expressão pressupõe um exercício de crítica, focado na narrativa de fatos de interesse público. Porém, cabe ao cartunista o cuidado para que seu trabalho não extrapole para a difamação, causando danos nocivos a personalidade do retratado, mesmo que de forma involuntária. Essa é uma linha muito difícil de se traçar, cabendo uma interpretação muito subjetiva.

O retratado em uma charge terá o direito de acionar a justiça. E após o devido processo legal, onde será dado a ampla defesa e contraditório, caberá ao judiciário a decisão final se a interpretação do trabalho foi uma crítica ou ofensa.

REFERÊNCIAS

AGOSTINI, Angelo. O Cemitério da Consolação no dia de finados. O Cabrião. Número 6. São Paulo, SP, 1866.
https://digital.bbm.usp.br/bitstream/bbm/7056/7/N.06_45000033275.pdf

BRASIL. Código Criminal do Império do Brasil. Rio de Janeiro, RJ, 1830.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/lim-16-12-1830.htm

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF, Senado, 1988.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm

BRASIL. Congresso Nacional. Pacto São José da Costa Rica. Decreto Legislativo nº 27, de 1992. Aprova o texto da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto São José) celebrado em São José da Costa Rica, em 22 de novembro de 1969, por ocasião da Conferência especializada Interamericana sobre Direitos Humanos. DF, 1992.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/D0678.htm

BRASIL. Congresso Nacional. Lei Nº 7.170, de 14 de dezembro de 1983. Define os crimes contra a segurança nacional, a ordem política e social. Brasília, DF, 1983.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7170.htm

BRASIL. Congresso Nacional. Lei Nº 9.504, de 30 de Setembro de 1997. Estabelece normas para as eleições. Brasília, DF, 1997.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L9504.htm

BRASIL. Congresso Nacional. Lei Nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Brasília, DF, 2002.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm

BRASIL. Justiça Federal da 1ª Região. Inquérito Policial 1040241-18.2020.4.01.3400. Calúnia, Crimes contra a Segurança Nacional, a Ordem Política e Social. . 26 maio 2021. Disponível em: https://pje1g.trf1.jus.br/pje/Processo/ConsultaDocumento/listView.seam?x=21052615535297200000551123041

BRASIL. Supremo Tribunal. Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.451. Voto Ministro Celso de Mello. DF, 2018. 
http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=3938343

Convenção Americana de Direitos Humanos. Pacto São José da Costa Rica. 1969.
http://www.cidh.org/Basicos/Portugues/c.Convencao_Americana.htm

COELHO, Mártires. Inocêncio, et alli. Curso de Direito Constitucional. Saraiva, 2ª ed., 2008, p. 284-285

Declaração Universal dos Direitos Humanos. Paris, 1948. Disponível em: https://nacoesunidas.org/wp-content/uploads/2018/10/DUDH.pdf

PORTO ALEGRE. Tribunal de Justiça. Processo 9065657-04.219.8.21.0001. Direito Administrativo e outras matérias de direito público. 3ª Vara da Fazenda Pública. Porto Alegre, 2019.

RIGAMONTE, Paulo Arthur Germano. SILVEIRA, Daniel Barile da. Liberdade de expressão e humor: o exercício livre da comédia e a escalada judicial de processos na visão do STF. Curitiba: Editora Juruá, 2018. Disponível em: https://www.jurua.com.br/bv/conteudo.asp?id=26499&pag=1

SANCHOTENE, Carlos Renan Samuel. Mídia, Humor e política. A charge da televisão. Rio de Janeiro: E-papers, 2011. Disponível em: https://books.google.com.br/books

SOUZA, Pablo Bráulio de. Cultura política, sátira e caricatura. Moralidade pública liberal na imprensa humorística da década de 1860. Monografia (Departamento de História) – Instituto de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Federal de Ouro Preto, Mariana, 2008. Disponível em: https://lph.ichs.ufop.br/sites/default/files/lph/files/115_pablo_braulio_de_souza_-_cultura_politica_satira_e0acaricatura0amoralidade_publica_liberal_na_imprensa_humoristica_paulista_da_decada_de0a1860.pdf?m=1525724397

UOL. Luciano Hang processa cartunista por charge em que é chamado de ‘monstro’. São Paulo, UOL, 16 dez. 2021. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2021/12/16/luciano-hang-processa-cartunista-por-charge-em-que-e-chamado-de-monstro.htm

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